
Foi, salvo erro, na noite de 24 de Dezembro de 83 ou 84 que, ao rasgar um papel vermelho com folhas de azevinho verdes, me deparei com o título Memorial do Convento . Acabei de desembrulhar a prenda e, segurando com a mão esquerda a lombada do livro, o polegar direito deslizou sobre as páginas como se avaliasse o conteúdo da obra. De Saramago, eu conhecia as crónicas e pouco mais. Durante meses - talvez anos - aquele livro ficou na estante. Até que... Comecei a ler: " D. João, quinto do nome na tabela real, irá esta noite ao quarto de sua mulher, D. Maria Ana Josefa, que chegou há mais de dois anos da Áustria para dar infantes à coroa portuguesa e até hoje ainda não emprenhou. Já se murmura na corte, dentro e fora do palácio, que a rainha, provavelmente, tem a madre seca, insinuação muito resguardada de orelhas e bocas delatoras..." e já não consegui parar, presa a uma visão crítica e irreverente do reinado de D. João V, em que o narrador entrelaça personagens e acontecimentos verídicos com seres engenhosamente conseguidos pela ficção. Assim, surgem, perspectivados pelo olhar crítico do narrador - atento e sarcástico - um D. João V inseguro, insensível e megalómano, obcecado pela ostentação e pela construção do Convento de Mafra; uma rainha submissa e ansiosa por procriar e que, em sonhos - apenas em sonhos - se envolve com o cunhado, D. Francisco; Bartolomeu de Gusmão, o padre inconformista e inconformado, inventor da Passarola Voadora que, desafiando o poder religioso - a Inquisição! - concretiza o seu corajoso projecto de voar; um par de apaixonados: Blimunda, mulher capaz de ver o interior das pessoas e das coisas, e Baltazar, soldado maneta, "despedido" da guerra por já não "servir". Há também o Povo, ingénuo, indefeso, ignorante, oprimido e sofrido, maltratado e miserável... Mas o que mais me fascina, nesta obra, é a intenção de interferência do passado com o presente: a História torna-se matéria simbólica para reflectir sobre o presente, numa perspectiva de denúncia e grito de revolta.
Clara Barreto
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